quarta-feira, 27 de março de 2013

Conto 0010 A Lady versão 3.0

Depois de muito tempo consegui vaga no hospital de reabilitação, no dia da internação fiquei espantada com o tanto de cadeirantes que eu vi, quando ficamos na cadeira de rodas, pensamos só em nós, mas, naquele dia eu vi que existem muitos de nós, cadeirantes. O médico me disse que a primeira coisa que seria feita era uma bateria de exames pra ter um diagnóstico preciso do meu caso e que ao longo dos dias eu seria atendido por uma equipe multiprofissional, médicos, fisioterapeutas, psicólogos... E que cada um deles teria uma consulta particular comigo.

Ao chegar na enfermaria os enfermeiros me deixaram sem graça, com perguntas um tanto intimas:
<Enfermeira1> A primeira coisa que vamos fazer é tirar essa sonda de demora e você começará a fazer o cateterismo intermitente, que aqui chamamos de CAT, como você e seu acompanhante não sabem fazer isso nós o faremos. Você fez cocô hoje?
<Maria> Como assim, que tipo de pergunta é essa, isso é muito intimo não?
<Enfermeira1> Maria isso é normal, todos os dias irão te perguntar se você fez cocô, como eram suas fezes, coisas do tipo, se você não evacua suas fezes podem ressecar em seu intestino, se isso acontecer, seu quadro clínico piora!
<Maria> Tudo bem, faz uns 15 dias que eu não faço cocô
<Enfermeira1> Certo colocarei aqui que sua dieta é laxante, e a partir de agora você irá tomar laxante pra ver se o intestino funciona
<Maria> Certo
<Enfermeira1> Então vamos tratar de tirar essa sonda!

Ela fez o procedimento de tirar a sonda, nossa, só de ver aquilo eu já me sentia constrangida, os primeiros dias foram uma bateria de exames sem fim, minha mãe era minha acompanhante, quando não tinha o que fazer eu andava com ela pelo hospital, era enorme, nunca tinha visto um hospital daquele jeito, tudo limpo, organizado o pessoal todo sorridente, muitos profissionais de todas as espécies.
Ainda tinha de me acostumar a fazer o tal CAT, de quatro em quatro horas a enfermeira aparecia pra tirar o xixi da minha bexiga, o CAT é a sigla pra cateterismo, que nesse caso o nome completo é cateterismo vesical intermitente, eles explicaram que como meu corpo não fazia mais xixi do meio tradicional, nós teríamos que fazer isso, caso a urina ficasse retida no organismo, poderia danificar o rim e em ultimo caso perder o rim, ele para de funcionar, esse mundo era uma coisa totalmente nova pra mim, cheio de rituais e siglas.

Após uma semana no hospital finalmente terminaram os exames, mas, nada de fazer cocô, eles me deram vários tipos de laxante ao mesmo tempo e nada, por fim a enfermeira disse que na hora do banho iria tentar uma técnica diferente pra ver se o cocô saia, eu nem me toquei nesse negócio de técnica, na hora do banho foi o terror, eles já tinham ensinado pra minha mãe fazer uma tal massagem na hora do banho, mas, aquilo nada adiantava.

A enfermeira disse que teria de ser dessa forma, que não haveria outra, então ela colocou uma luva, passou óleo mineral no dedo e enfiou o dedo no meu anus, nossa, quantos namorados meus não pediram pra eu fazer sexo anal e eu nunca tinha feito, no entanto perdi minha virgindade anal com uma dedada, depois que ela fez esse tal estímulo, eu comecei a defecar, mas, confesso que fiquei traumatizada com aquela cena.

Quando saí do banheiro, mal conseguia olhar nos olhos das pessoas, será que todos aqui já passaram por isso? Será que esse é o procedimento mesmo? Não me conformei com isso, depois da hora do jantar os pacientes desciam pra uma parte do hospital, onde tinham bancos e ficavam ali conversando, eu pedia pra mãe pra descer com eles, mas, ela nunca queria ir, eu ficava deitada naquela cama, aquilo estava ficando monótono.

Chegou segunda feira, um fisioterapeuta me colocou na cadeira e me levou até o local onde se fazia fisioterapia, lá começou a fazer uma série de testes comigo, de sensibilidade e movimento, eu pensava em mexer e nada, até que olhei pro meu braço e ele deu uma espécie de tremida, ele logo pediu pra eu tentar repeti o movimento, eu repeti e ele mexeu mais um pouco, nossa, fiquei tão feliz, ele me disse que isso era um bom sinal, que logo eu poderia ganhar novos movimentos.

Durante a semana comecei a ir em várias aulas, nelas eu aprendi o que é uma lesão medular, o que era o CAT e porque fazê-lo, descobri que aquela dedada que eu recebi, era procedimento padrão, porque se o cocô ficar dentro do organismo pode me causar diversos sintomas indesejáveis, aprendi que não posso ficar muito tempo sentada na mesma posição, porque isso pode dar escara, que é uma ferida na pele, a semana foi bastante produtiva, pelo menos eu saí daquela monotonia de ficar deitada.

Aquela rotina estava me torrando a paciência, todo dia as enfermeiras perguntavam se eu tinha evacuado, se tinha saído bastante cocô, nossa, nunca ninguém tinha me feito esse tipo de pergunta, ainda demoraria até eu me acostumar com isso, e o tal CAT, quando eu menos esperava a enfermeira vinha e fazia o CAT em mim, dizia que estava na hora e simplesmente fazia.

Um dia a mãe me levou lá pra baixo do hospital, onde os outros pacientes ficavam, quando cheguei lá encontrei uma enorme roda de cadeirantes, nossa fiquei tão feliz, comecei a conversar com eles, eram pessoas muito legais, todos perguntavam em que nível era minha lesão e diziam as deles, se eu sentia algo, como tinha sido meu acidente, depois de um bom tempo sem badalar, mesmo em um hospital, eu estava gostando, sorri demais, eles eram muito legais, nunca pensei que um dia voltaria a sorrir de algo, mas, confesso, estou começando a me adaptar a essa nova vida.

Continua...

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